Os
alunos do 3º ano do Ensino Médio da Escola Estadual José Ferreira da
Silva – o "Ginásio Escola" - realizaram um protesto na manhã desta
segunda-feira (6) para a chamar a atenção da Diretoria de Ensino de São
Carlos, que segundo os alunos, está sendo incapaz de resolver um
problema vivenciado desde o inicio do ano por uma colega de classe, que
é deficiente auditiva e necessita do acompanhamento de um interprete de
libras [Linguagem Brasileira de Sinais] para se comunicar com os
professores e aprender as matérias ensinadas na sala de aula.
Assim como os demais alunos
da sua sala, Jessie Albieri, de 16 anos, está cursando o último ano do
ensino médio, período crucial para a formação dos estudantes que
normalmente prestam as provas do ENEM no final do ano para ingressar em
uma faculdade. Ocorre que desde o início das aulas, no dia 2 de
fevereiro, Jessie não conseguiu participar ativamente de uma única aula
sequer, em razão da falta de um intérprete que faz a tradução simultânea
das matérias aplicadas na sala de aula. Desde a 6ª série do Ensino
fundamental, Jessie sempre contou com o acompanhamento de um professor
especializado em libras.
O manifesto desta manhã
ocorreu justamente em razão da Diretoria de Ensino da Região de São
Carlos não ter conseguido garantir o direito da aluna de contar com um
intérprete durante as aulas, mesmo com quase 40 dias do início das
aulas. De acordo com os alunos, a ideia do manifesto é a de sensibilizar
as autoridades para que o caso seja resolvido com brevidade e em
definitivo.
"PROFESSOR DE HISTÓRIA, NÃO DE LIBRAS"
- Segundo o que foi apurado pelo
DESCALVADO NEWS,
o problema teve início com a troca do professor que acompanhava a aluna
desde a sexta série. A Diretoria de Ensino da Região de São Carlos
escalou um intérprete residente na cidade de Araraquara, para acompanhar
a aluna diariamente na sala de aula. Ocorre que o professor destacado é
formado em história, mas também teria inserido em seu currículo que
possui o curso de libras, motivo pelo qual o sistema de pontuação que
faz as atribuições de aulas para os municípios da região de São Carlos,
selecionou o professor para a função.
Ainda de acordo com o
que foi apurado pela reportagem, ao tomar conhecimento da atribuição
como intérprete de libras, o próprio professor teria alertado que ele
não detinha a prática necessária para acompanhar a aluna, uma vez que o
certificado de libras que ele possui foi conquistado em um curso feito
pela internet.
Jessie é acompanhada por
uma intérprete desde o 6º ano do Ensino Fundamental, e possui enorme
fluência em libras. A aluna é considerada pelos amigos e professores
umas das mais dedicadas da turma. Em seu currículo, a estudante
coleciona uma grande quantidade de notas altas.
Porém, uma mudança na
regulamentação do sistema que faz as atribuições dos professores que não
são concursados mas prestam serviço para o Estado, fez com que a
Diretoria de Ensino escalasse outro intérprete para o ano de 2017.
De acordo com a família
de Jessie, o professor de Araraquara teria confirmado que o curso de
libras que ele possui foi feito pela internet, e não o qualifica para a
função de intérprete na rede pública de ensino. Os amigos da estudante
também confirmam a incapacidade do professor. “Ele veio uma ou duas
vezes eu acho, e ficou lá sentado ao lado dela sem fazer nada. Ela sabe
escrever, então tinha como ele se comunicar com ela, porque que eu
também não sei libras, mas eu soletro ou escrevo pra ela, e ela me
responde ou vai me ensinando os sinais. Ele tem esse certificado com as
horas [do curso de libras], só que ele é professor de história e não
sabe nada de libras”, disse a estudante Geovanna Piristrello, de 17
anos.
“Estudo com a Jessie
desde o primeiro colegial. A intérprete que acompanhava ela até o ano
passado fazia um ótimo trabalho. Ela sabia interagir com a Jessie e com
a gente também. Foi ela inclusive que ensinou a Jessie e os amigos a
linguagem de sinais. Acontece que outro professor que não sabe libras
pegou as aulas, e agora ele não vem!”, relatou a amiga Julia Mariano, de
16 anos.
DIRETORIA DE ENSINO TERIA SIDO COMUNICADA DO PROBLEMA ANTES DO INÍCIO
DAS AULAS
– A redação do site já havia tomado conhecimento do caso da estudante
Jessie Albieri, no início do mês de fevereiro. O próprio professor de
História procurou o
DESCALVADO NEWS
para falar sobre o problema e a sua preocupação com o aprendizado da
aluna. Porém, um dia depois de conversar com a nossa equipe, o professor
solicitou que o seu depoimento não fosse publicado.
Em contato com a Diretoria de Ensino de São Carlos, no dia 3 de fevereiro,
questionamos sobre o problema da aluna estar sendo assistida por profissional
incapacitado para a função. A nota assinada pela Dirigente Regional de Ensino,
Débora Gonzalez Costa Blanco, traz a seguinte explicação:
“No mês
de setembro de 2016 o Professor Sérgio de Caires Pinheiro Junior fez sua
inscrição no Sistema de Gestão Dinâmica da Administração Escolar - GDAE.
Trata-se de Sistema informatizado, via internet. O professor Sérgio fez
a inscrição para ministrar aulas como Interlocutor - LIBRAS com senha
pessoal e indicou possuir qualificação para ministrar tais aulas. Assim,
o Professor Sérgio foi classificado para participar da Atribuição de
Aulas.
No dia
30/01/2017 o Professor Sérgio participou do processo de Atribuição de
Aulas e ao mesmo foram apresentadas aulas de Interlocutor - LIBRAS, na
cidade de Descalvado. O professor Sérgio de livre vontade manifestou
interesse pelas aulas e as mesmas foram atribuídas.
Todos os
procedimentos foram embasados na Resolução SE 72, de 22-12-2016 que
dispõe sobre o processo anual de atribuição de classes e aulas ao
pessoal docente do Quadro do Magistério.
Quanto às
afirmações do Professor Sergio sobre sua incapacidade técnica e
consequente prejuízo à aluna, todas as providências administrativas e
criminais estão sendo tomadas pela Diretoria de Ensino de São Carlos
junto aos respectivos órgãos competentes.”
Para o estudante Micael
Junior dos Santos, de 16 anos, o problema todo teve origem na própria
Diretoria de Ensino. “Segundo esse intérprete que veio, ele foi forçado
pela Diretoria de Ensino pra pegar as aulas, porque ele tem o curso de
libras, mas dá aula de História. Aí a Diretoria [de Ensino] obrigou ele
a pegar [a função de intérprete]”, disse o aluno.
Ainda segundo o aluno, a
Diretoria de Ensino até concordou que a antiga intérprete volte a
acompanhar Jessie, mas de forma eventual. “A Diretoria de Ensino quer
que ela trabalhe como eventual, não como a intérprete da sala!”, disse
Micael.
Jessie Albieri: "O surdo nao é mudo, não é alienado
mental e também não é uma cópia mal feita do ouvinte. Quero
um intérprete que saiba libras... que não tire de mim o direito que eu
tenho de aprender" |
|
“Ele veio no dia dois e no dia três [de fevereiro], o resto ele
faltou ou mandou atestado. A Pollyana [ex intérprete de Jessie]
até veio cobrir as faltas dele, mas não compensa, ela recebe
como eventual, ganhando bem menos e não tem direito a férias, a
nada, enquanto o outro vai pegando licença médica e ganhado
normalmente, tendo direito a tudo, então não compensa pra ela
entendeu?” explicou Geovanna.
“Se você perguntar
para qualquer professor, eles vão confirmar o quanto a Pollyana
colabora na educação da Jessie”, complementou Julia após a
explicação da amiga Geovanna.
De acordo com o
grupo de alunos, tanto os professores como a direção do
‘Ginásio’ estão sensibilizados com a precariedade com que a
estudante vem sendo assistida, mas não há muito a ser feito. “O
problema não é aqui, é lá na Diretoria [de Ensino] de São
Carlos. A Pollyana estudou pra ser intérprete, ela é muito boa
nisso, e alguma coisa precisa ser feita, porque a Jessie não
pode ficar mais nessa situação de abandono”, conclui o
estudante.
Os amigos
encerraram o depoimento à reportagem do
DESCALVADO NEWS
falando de um texto que Jessie postou no final do mês de
fevereiro
[veja ao lado], onde ela demonstrou a sua insatisfação diante da
situação que tem vivido. “Ela está muito triste, muito
desanimada com tudo isso. Ela postou um texto no Facebook ,
falando que ela não era alienada, que ela tinha o direito de
aprender, e todo mundo ficou sensibilizado. Até alguns
professores chegaram a manifestar apoio na postagem. Querendo ou
não, ela vai se sentir diferente entendeu?”, finalizou.
MÃE INDIGNADA
– A reportagem do
DESCALVADO NEWS
também conversou com a mãe de Jessie, a dona de casa Roselaine
Sartinine Albieri, de 40 anos. A mãe da estudante relatou que
soube que a filha teria problemas com o professor de libras logo
no primeiro dia de aula. “Mandaram esse
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intérprete, que é professor de história, e como ele falou pra
mim que tem o ‘papel’ com as trezentas horas do curso de libras,
mas ele me disse e pra todo mundo lá da escola, que ele não sabe
nem o alfabeto [de libras]. Então ele não poderia ‘tá’ ajudando
em nada a Jessie!”. |
Segundo a mãe da
deficiente auditiva, o professor chegou a procurar a Diretoria
de Ensino para expor o problema, mas ele teria sido informado
que caso não pegasse as atribuições como intérprete, ele poderia
perder inclusive o seu contrato como professor de História. “Ele
teve que pegar as aulas porque senão ele não poderia mais dar
aulas de História ‘pro’ Estado, por ele não ter
aceitado ser intérprete dela. Então quando ele fala que foi uma
pressão que foi feita pra ele pegar [a função de intérprete],
existe mesmo isso, só que o erro dele foi ter colocado na sua
inscrição que tinha o curso de libras”, explicou.
Ainda de acordo com a
mãe da aluna, ela chegou a ir pessoalmente na Diretoria de Ensino para
tentar uma solução para o caso, mas foi informada de que a filha estava
com o melhor intérprete da região. “Eu fui lá em São Carlos e falei com
o Edvaldo, que é o responsável por toda essa parte nas escolas da
região, e ele falou pra mim que tinha contrato o melhor, que no papel,
esse era o melhor! Aí eu falei que não quero no papel, eu quero na
prática, porque minha família fala sinais fluentemente, então eu tenho
que ter um intérprete que esteja no nível que ela está, porque senão vai
prejudicar o último ano dela. Tem ENEM, tem faculdade pra frente! E aí
ele falou que não podia fazer mais nada!”, desabafou a mãe.
A mãe de Jessie também
confirmou para o
DESCALVADO NEWS
que chegou a ouvir do intérprete que ele viria apenas 2 dias para
Descalvado, e depois apresentaria atestado médico para justificar a sua
ausência. “Ele falou pra mim que viria apenas os dois primeiros dias, e
depois ia entrar com atestado [médico]. Aí viria mais um dia e
apresentaria novo atestado. E é isso que ele tá fazendo! E a Jessie não
conseguiu assistir uma única aula até agora!”, contou.
“Eu penso que minha
filha tá perdendo muitas oportunidades. Tá perdendo muito conteúdo e
isso vai prejudicar ela. Eu espero que a justiça seja feita, porque é
difícil a gente ver um filho da gente sofrendo preconceito, porque pra
mim é isso que estão fazendo com ela! Isso está prejudicando o emocional
dela, porque até sem comer ela ‘tá’ ficando, e agora nem na escola ela
quer ir mais!”, falou com indignação a mãe da aluna.
Dona Roselaine relatou
ainda que a situação chegou ao extremo de ouvir do representante da
Diretoria de Ensino, de que a filha precisaria ter paciência e ensinar o
intérprete a linguagem de sinais. Segundo ela, foi neste momento que a
decisão de procurar a ajuda do Ministério Público foi tomada. “A sua
filha vai ter que ter paciência pra ensinar o intérprete! Foi aí que eu
resolvi procurar a Promotora”, concluiu a mãe, explicando ainda que
somente depois que a Promotora de Justiça entrou em contato com a
Diretoria de Ensino, é que a filha passou a receber o acompanhamento da
ex intérprete por alguns dias, contratada de forma eventual e por um
curto período.
JESSIE
– Com a ajuda da mãe, a estudante também conversou com a nossa
reportagem. A estudante não conseguiu esconder [mesmo diante da
impossibilidade
da fala] o quanto todo este episódio tem lhe deixado entristecida.
Questionada sobre o que
ela está achando de todo este episódio, Jessie contou por meio da
linguagem de sinais que ‘está achando tudo isso que está acontecendo
muito errado, que não poderia estar ocorrendo, e que ela precisa da
libra para aprender, porque quando o professor explica para a sala ela
necessita do intérprete para também aprender’.
A estudante disse ainda
estar muito triste com o que vem ocorrendo com ela, ‘e que o seu maior
desejo neste momento é que tudo se resolva o mais rápido possível para
que ela volte logo para a escola e continue aprendendo junto com os
amigos’. Sobre a manifestação de apoio, Jessie disse que ficou muito
feliz ao saber da atitude dos amigos, no qual demonstraram o quanto se
preocupam com ela.
MINISTÉRIO PÚBLICO
– Para o DESCALVADO
NEWS, a Dra.
Deborah Benatti, 2ª Promotora de Justiça da Comarca de Descalvado,
explicou que ajuizou uma Ação Civil Pública contra o Estado tão logo
tomou conhecimento do caso. “O Ministério Público tem como atribuição a
defesa dos direitos do adolescente. Neste caso, além de adolescente, ela
ainda é portadora de uma necessidade especial, e eu na qualidade de
Promotora de Justiça com atribuição na Infância e Juventude, eu entrei
com uma Ação Civil Pública em favor dela. Eu fiz desta forma para que
ela não precisasse passar por uma triagem na OAB, que seria muito mais
demorado, e até o advogado se inteirar do assunto, desta forma foi mais
rápido. Tão logo ela veio e trouxe os documentos, eu já ajuizei a ação.
Como a questão era delicada e de urgência, o Ministério Público fez o
que lhe competia, e o problema agora está no judiciário para uma decisão
do juiz.”
A Promotora ainda
explicou que apesar da urgência, o processo ajuizado tem que seguir toda
uma tramitação prevista para o caso. “Ocorre que até aquele momento, não
tramitava absolutamente nada no judiciário sobre este caso. Eu entrei
com a ação contra o Estado no dia nove de fevereiro, inclusive com
pedido de tutela de urgência, que é a tutela que o juiz analisa antes de
qualquer outra situação, porque há um perigo, há um risco iminente dela
perder as aulas, e isso é irreversível. Para o conteúdo didático, isso é
irreversível”, explicou a Dra. Deborah.
“Eu
também arrolei testemunhas, porque pra mim ficou muito claro a
situação dela. Eu sei qual é o direito dela e o que estão
fazendo com ela na escola. Caso o juiz tiver duvidas sobre o que
eu narrei na ação, essas testemunhas podem demonstrar
pessoalmente para ele qual é a real situação dela. Ocorre que o
juiz aplicou, com base em um artigo da Lei 8.437, de 1992, no
qual estipula que qualquer liminar que seja dada contra a
Fazenda Pública, ela tem setenta e duas horas para se
manifestar. Só que estas setenta e duas horas são a partir da
citação da Fazenda Pública, porque o que demora é citação, e não
o prazo estipulado pela Lei. Por conta disso, a manifestação da
Fazenda Pública ainda não retornou, e o juiz não deve falar nada
enquanto isso não acontecer”, explicou a representante do MP.
Sensibilizada pela
demora, Dra. Deborah relatou que na última sexta-feira (3),
voltou a solicitar do judiciário uma |
Dra. Deborah Benatti: "Há um perigo, há um risco
iminente dela perder as aulas, e isso é
irreversível. Para o conteúdo didático, isso é
irreversível” |
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solução mais rápida para o impasse. “Eu realmente,
sentida e penalizada com a situação dela, sabendo o quão
inteligente e comprometida ela é com os seus estudos, e baseada
na Constituição Federal que é clara quando diz que ela precisa
ser assistida de forma digna, e ela não está sendo incluída de
forma digna, uma vez que ela fica na sala e não consegue
entender o que está sendo passado, fiz uma nova petição na
última sexta-feira, explicando que o cumprimento deste artigo
estava demorando muito e indagando o que poderia ser feito para
isso ser agilizado. Expliquei também que ela está sem dignidade
em sala de aula, está sem tradutor, que está perdendo aula, ou
seja, relatei tudo o que está acontecendo, além de arrolar mais
uma testemunha. Enfim, tudo aquilo que é possível fazer, nós
estamos fazendo. A demora infelizmente faz parte do trâmite do
processo judicial. É obvio que isso causa prejuízo, tanto que
peticionei explicando para o juiz que ela está sofrendo e que
este sofrimento não é uma coisa normal para a condição dela.
Então estamos aguardando uma manifestação posterior do juiz, e
de repente ele possa entender de forma diferente e tomar algum
outro tipo de decisão que possa agilizar a citação da Fazenda
Pública”, concluiu a Promotora de Justiça.
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