aceitas
principalmente no meio acadêmico (e os motivos serão conhecidos
a seguir).
Para entender o que
realmente muda, a obrigatoriedade das novas formas de se
escrever o português e, o porquê de tanta discussão em torno do
assunto, o site
DESCALVADO NEWS
buscou informações junto da Graduada em Letras
Português/Espanhol pela UNESP. Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, com ênfase em Variação e
Mudança Linguística, pela UNESP, Flávia Cambi. Ela é também
Professora de inglês, espanhol e língua portuguesa.
Em sua
entrevista, Flávia discorre sobre o Novo Acordo, as principais
mudanças e sua opinião, que diverge da nova realidade da Língua
Portuguesa. Acompanhe:
DESCALVADO NEWS
- Desde o dia 1º de janeiro, está em vigência obrigatória o novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A implementação estava
prevista para 2013, mas o governo brasileiro adiou a medida para
alinhar o cronograma com o de outros países lusófonos e dar
prazo maior para a adaptação da população. Na sua opinião, a
adaptação demandava mesmo todo esse tempo?
FLÁVIA
CAMBI:
Na realidade, o Brasil é o terceiro país, dentre os oito
que fazem parte da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP), a por em vigência o Novo Acordo.
Portugal e Cabo Verde foram os primeiros a utiliza-lo e
os demais países lusófonos ainda não colocaram as novas
regras em vigor, o que não faz sentido a questão do
alinhamento do cronograma.
No meu
ponto de vista, também não faz sentido o prazo maior
para a adaptação da população – assim como não faz muito
sentido o próprio Acordo Ortográfico, como falarei mais
adiante. Para mim, soa um pouco “ditatorial” - falando
grosseiramente, na falta de uma palavra melhor -dizer
que “estamos assinando um acordo pra unificar a
ortografia entre os países falantes de língua portuguesa
e vocês tem agora 3 anos para aprender as novas regras”,
como se a assimilação do conhecimento tivesse um prazo. |
Flávia Cambi é Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, com
ênfase em Variação e Mudança Linguística,
pela UNESP |
|
Porém, como
tudo funciona da forma mais burocrática possível, essa
atitude de estender o prazo foi, de certa forma,
previsível. |
O governo
brasileiro, na verdade, adiou a implementação porque causou
muita polêmica entre o meio acadêmico, sobretudo entre os
linguistas. No meu ponto de vista, e na maioria dos professores
também, o acordo sequer deveria entrar em vigor, porque do ponto
linguístico ele não faz sentido. O português falado em Portugal
é muito diferente daquele que é falado em Cabo Verde, que é
muito diferente daquele português que é falado em Moçambique,
que é muito diferente daquele que é falado por nós. Eu,
inclusive, defendo a ideia de chamarmos nosso idioma de “língua
portuguesa brasileira” ou simplesmente “brasileiro”, justamente
por conta dessa diferença. Então, achar que vamos padronizar,
ainda que minimamente, todos esses “portugueses” falados nesses
países é uma ilusão, e as diferenças ortográficas são poucas,
comparadas as demais diferenças, que já atingem diversos níveis
da linguagem: a semântica, a fonética e até a sintaxe.
DESCALVADO NEWS
– Quais são as principais mudanças para os brasileiros (se
possível com exemplo de palavras ou frases)?
FLÁVIA CAMBI:
Resumidamente, o Novo Acordo Ortográfico atinge apenas o
alfabeto, os acentos, o hífen e o trema. Segundo o Ministério da
Educação, o Brasil terá apenas 0,8% de seus vocábulos alterados
com o Novo Acordo, enquanto que os portugueses, por exemplo,
terão 1,3%.
O alfabeto e o
trema não sofreram grandes mudanças: k, w e y passam a integrar
o alfabeto, que fica, portanto, com 26 letras, e não mais 23.
Isso acontece porque essas três letras eram vistas em uso apenas
em palavras estrangeiras, adotadas no nosso idioma. Contudo,
muitas dessas palavras, ainda que oriundas de outro idioma que
não o português, já integram o nosso idioma, pois foram
abrasileiradas, sofrendo ou não mudanças na escrita, sem contar
que temos muitos nomes indígenas e abreviações de medidas.
Agora, elas passam, então, a fazer parte do alfabeto oficial.
Com relação ao
trema, podemos ficar tranqüilos tranquilos: ele deixa de
existir. Isso para os substantivos simples, já que a regra não
se aplica a nomes próprios, como Müller e Citröen, por exemplo.
Já o hífen e o
acento dão um pouco mais de trabalho. No caso dos acentos, os
chamados acentos diferenciais deixam de existir em algumas
palavras homógrafas (escritas da mesma forma), mas que são de
classe e função gramatical diferentes. Um exemplo de mudança é o
para, que antes era acentuado na posição de verbo, para
distinguir do para, preposição. Já o verbo poder, por exemplo,
conjugado nas formas pode e pôde não sofre alteração no acento
diferencial:
|
Classe gramatical |
Como era |
Como ficou |
(a) para |
Verbo parar (3ª pessoa do singular do Presente do
Indicativo) |
Ela pára de estudar quando escuta algum barulho. |
Ela para de estudar quando escuta algum barulho. |
(b) para |
Preposição |
Luís trouxe um presente para mim. |
Luís trouxe um presente para mim. |
|
Classe gramatical |
Não houve alteração |
(a) pode |
Verbo poder (3ª pessoa do singular Presente do
Indicativo) |
Sofia já pode ir à piscina, pois não está mais
doente. |
Sofia já pode ir à piscina, pois não está mais
doente. |
(b) pôde |
Verbo poder (3ª pessoa do singular do Pretérito
Perfeito do Indicativo) |
Meu pai pôde ouvir o que ele disse, pois ele estava
perto. |
Meu pai pôde ouvir o que ele disse, pois ele estava
perto. |
Ainda sobre o
acento, o acento agudo também foi eliminado de palavras com
ditongo aberto “ei” e “oi”:
Como era |
Como ficou |
idéia, platéia, colméia, jibóia |
ideia, plateia, colmeia, jiboia. |
Por fim, outra
mudança sofrida é o uso do acento circunflexo em palavras que
contém as vogais “e” e “o” dobradas em verbos e em substantivos,
como, por exemplo:
Como era |
Como ficou |
Eles crêem em um único Deus.
Outros casos: lêem, vêem, dêem; |
Eles creem em um único Deus.
leem; veem; deem. |
Maria sentiu enjôo pela manhã, mas já passa bem
agora.
Outros casos: vôo. |
Maria sentiu enjoo pela manhã, mas já passa bem
agora.
Outros casos: voo; enjoo. |
No caso do
hífen, as alterações são mais impactantes:
Vogais diferentes |
Não use hífen e junte |
autoescola, infraestrutura, autoajuda, semiaberto,
semiárido, autoafirmação |
Vogais iguais |
Use hífen |
anti-inflamatório, micro-ônibus, micro-ondas,
auto-observação, contra-ataque |
Consoantes diferentes |
Não use hífen e junte |
intermunicipal, hipermercado, superpopulação |
Consoantes iguais |
Use hífen |
sub-base, super-requintado, inter-relacionar,
super-romântico |
Vogal + Consoante |
Não use hífen e junte |
seminovo, autoconhecimento, autodesenvolvimento |
Consoante + Vogal |
Não use hífen e junte |
hiperacidez, superinteressante |
Vogal + R/S |
Junte e dobre o R ou o S |
antirrugas, antissocial, ultrassonografia,
minissaia, autorretrato |
DESCALVADO NEWS
- Quem é que deve estar mais atento às novas regras?
FLÁVIA CAMBI:
Como sabido, de 2009 para cá as duas normas eram aceitas. Os
candidatos do Enem, por exemplo, podiam, até então, redigir a
redação pedida no exame tanto nas regras antigas quanto nas
regras do Novo Acordo sem problema nenhum, ou seja, o candidato
não era favorecido por saber as novas regras da mesma forma que
também não era prejudicado por escrever “idéia” no lugar de
“ideia”. E isso não era típico do Enem: outros vestibulares e
concursos públicos também aceitavam as duas formas e documentos,
publicações e cartas oficiais também poderiam ser redigidas em
qualquer uma das formas. Acredito que os que devem estar mais
atento à mudança, agora, são os vestibulandos que deverão,
obrigatoriamente, redigir suas redações utilizando das novas
regras, pois a partir de agora “idéia” é considerado um erro
ortográfico e, portanto, passível de ser penalizado em uma
redação. Sem contar, é claro, nos editores, revisores,
professores e jornalistas.
DESCALVADO NEWS
– Como absorver todas essas mudanças? Existe um método que seja
prático e funcional?
FLÁVIA CAMBI:
Meu conselho para quem realmente está interessado em aprender as
novas regras do Novo Acordo, por qualquer que seja o motivo: se
você está buscando em gramáticas e portais de língua portuguesa
que visam passar uma infinidade de regras, lendo uma por uma,
pare imediatamente. E isso vale para a aprendizagem de qualquer
idioma. É claro que ter uma boa gramática ou guia com regras
serve como um apoio e pode ajudar, mas não é um método prático e
tampouco funcional, porque não é suficiente. Nossa língua, assim
como tantas outras, é tão diversificada e rica que não cabe em
um livro de gramática, por mais funcional que seja ela. E isso
não serve apenas para o português brasileiro: se fosse assim,
com uma boa gramática e um bom dicionário, teríamos mais pessoas
no mundo falando alemão, romeno ou árabe, ou, simplesmente, mais
pessoas falantes de inglês como segunda língua.
Por experiência,
falo que a melhor maneira para se aprender alguma coisa,
qualquer que seja, é através da leitura. Não tenho vergonha
nenhuma em dizer, até porque isso não é nenhum motivo de
vergonha e também espero não ser mal interpretada, que eu nunca
aprendi que paralelepípedo é acentuado porque todas as
proparoxítonas são acentuadas em português. Ou seja, se hoje eu
tenho um bom domínio de escrita foi porque não fiquei apegada a
todas as regras que nossa gramática nos explica, e devo admitir
que eu odiava estudar sobre todas as regrinhas difíceis que só
seriam assimiladas se eu decorasse. Em vez disso, no lugar de
ler uma gramática eu sempre li muito, desde que comecei a ler
aos 6 anos, e sempre li de tudo: gibi, revistas, livros e
jornais. E com propriedade posso dizer que isso melhorou minha
escrita, tanto na parte formal quanto na parte de conteúdo: mais
do que aprender a escrever conforme manda nossa gramática
tradicional, também aprendi a organizar melhor minhas ideias
para que eu pudesse me expressar melhor.
Mas, voltando ao
assunto do Novo Acordo, aqui vai minha dica: não se desespere em
aprender de um dia para o outro. Se preocupe em aumentar seu
hábito de leitura, pois revistas, jornais e livros deverão
obrigatoriamente passar pela mudança e, com o hábito, aos
poucos, você vai assimilar as mudanças de forma eficaz e sem
perceber, de uma maneira que não seja fastidiosa.
DESCALVADO NEWS
– Costumamos dizer ou mesmo ouvir que a nossa Língua Portuguesa
é muito complexa. Qual sua opinião?
FLÁVIA CAMBI:
Eu não acredito nisso de que o português brasileiro é complexo.
Como dito anteriormente, ele é bastante rico pela diversidade,
dada a extensão do país e o regionalismo presente. Eu consigo me
comunicar com alguém do Acre, da mesma forma que alguém do sul
também consegue me entender, mas há muita diferença, sobretudo
no sotaque e no vocabulário. O que eu acho, na verdade, é que o
ensino de línguas é complexo, no sentido de ser dificultado por
quem ensina, e é o que faz a gente acreditar que a língua é
complexa, quando na verdade não é. E isso também vale para
outras línguas, pois sou professora de inglês e espanhol e vejo
o quanto as pessoas ficam com medo de aprender um idioma novo,
sobretudo o inglês, que é muito diferente do nosso idioma. No
caso do português, entre em uma escola regular de ensino básico
e pergunte quantas crianças gostam da aula de língua portuguesa:
a maioria vai achar chata ou difícil. Infelizmente, o que
acontece é que educação deixou de ser prioridade e português,
matemática, história, biologia e artes são ensinados de qualquer
jeito. No caso da educação pública brasileira, gastam-se bilhões
anualmente, mas ainda conseguem deixa-la entre as piores do
mundo, enquanto que, no caso da educação privada, o ensino virou
comércio e o objetivo das escolas particulares hoje é moldar os
alunos para que se tornem protótipos para adentrarem nas
universidades públicas e para que estas escolas lucrem com o
número de aprovações. Enquanto isso, o poder social da
linguagem, e de tantas outras formas de conhecimento, das mais
variadas áreas, acaba sendo deixado de lado e o poder de
transformação que a linguagem verbal possui não é utilizado,
pois não é trabalhado para que venha ser, o que implica em uma
falha no desenvolvimento pleno de uma sociedade.
DESCALVADO NEWS
– Suas considerações gerais!
FLÁVIA CAMBI:
Como já dito, não falamos o mesmo português que é falado em
Portugal. É claro que um português consegue entender o que um
brasileiro diz, mas poderão acontecer alguns problemas de
compreensão. “Caixa” para nós e “boceta” para eles (e nesse
caso, pensem na confusão!). “Fila”, “café”, “vitrine” em terras
brasileiras e “bicha”, “bica” e “montra” para terras lusitanas.
O "Podes dar-me uma boleia?" de lá vira "Você me dá uma carona?"
aqui. E olha como essas duas frases são diferentes, não só pelo
vocabulário boleia/carona, mas também pelo uso pronominal
tu/você e pela ordem sintática dos constituintes na oração.
Nosso idioma é tão diferente que os livros do Paulo Coelho, por
exemplo, são totalmente reescritos quando importados para
Portugal. Se falamos a mesma língua, por que esse procedimento
seria necessário?
Os mais
conservadores dirão que estamos assassinando o português de
Camões. Não, não estamos. E também não somos ignorantes, ao
passo que os portugueses sabem conservar da melhor forma o seu
idioma. Dizer todas essas coisas é um erro muito comum, do ponto
de vista linguístico. O que acontece é que há vários fatores
intrínsecos e extrínsecos que moldam toda a estrutura de um
idioma, e como brasileiros e portugueses têm um contexto
sociocultural (agora sem hífen e tudo junto, hein!) distinto, é
evidente que o idioma se configurará de forma distinta. E não há
nenhum problema nisso, pois toda essa diversidade corresponde a
uma riqueza cultural, herança de nossa história.
Diante dessa
pequena exposição de diferenças, portanto, toda a padronização
trazida pelo Novo Acordo ainda não é o suficiente para que o
objetivo seja conquistado. E, por um lado, é até bom que não o
seja, afinal, é praticamente impossível fazer com que as duas
línguas sejam próximas, pois, como dito, há muitos fatores por
trás de todas essas diferenças, perfeitamente normais para uma
língua em uso.
Por outro lado,
sob um ponto de vista educativo, com um sistema educacional
repleto de problemas como o nosso, o Novo Acordo também traz uma
preocupação que se torna constante: como modificar regras que
sequer foram aprendidas – você sabia como se usava o hífen antes
disso tudo? Você usava o trema quando escrevia cinquenta ou
linguística? Aliás, você sabia que existia esse negócio chamado
trema na nossa língua? Toda essa preocupação com a vigência do
Novo Acordo Ortográfico se sobrepõe às questões mais básicas:
queremos padronizar, com pouca eficácia, oito idiomas de oito
povos distintos, mas não conseguimos padronizar sequer o ensino
básico de qualidade do nosso povo.
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