16/02/2016 (18h09)

Novo Acordo Ortográfico da Lingua Portuguesa está em vigência e suas regras são obrigatórias desde 1º de janeiro

Em entrevista, Mestranda em Estudos Linguísticos da UNESP aborda as mudanças, mas defende o seu ponto de vista afirmando que o novo acordo não deveria ‘sequer entrar em vigor’.

Por Jaqueline Fonseca

A vigência obrigatória do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa já está valendo desde o dia 1º de janeiro de 2016. A implementação estava prevista para 2013, mas o governo brasileiro adiou a medida justificando ‘alinhamento do cronograma’ com o de outros países lusófonos (que falam a mesma língua) e dar prazo maior para a adaptação da população. O Acordo tem como objetivo unificar as regras do português escrito em todos os países que têm a língua portuguesa como idioma oficial, porém, as mudanças desde que anunciadas geram discussões, discordâncias e não são muito

 aceitas principalmente no meio acadêmico (e os motivos serão conhecidos a seguir).

Para entender o que realmente muda, a obrigatoriedade das novas formas de se escrever o português e, o porquê de tanta discussão em torno do assunto, o site DESCALVADO NEWS buscou informações junto da  Graduada em Letras Português/Espanhol pela UNESP. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, com ênfase em Variação e Mudança Linguística, pela UNESP, Flávia Cambi. Ela é também Professora de inglês, espanhol e língua portuguesa.

Em sua entrevista, Flávia discorre sobre o Novo Acordo, as principais mudanças e sua opinião, que diverge da nova realidade da Língua Portuguesa. Acompanhe:

DESCALVADO NEWS - Desde o dia 1º de janeiro, está em vigência obrigatória o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A implementação estava prevista para 2013, mas o governo brasileiro adiou a medida para alinhar o cronograma com o de outros países lusófonos e dar prazo maior para a adaptação da população.  Na sua opinião, a adaptação demandava mesmo todo esse tempo?

FLÁVIA CAMBI: Na realidade, o Brasil é o terceiro país, dentre os oito que fazem parte da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), a por em vigência o Novo Acordo. Portugal e Cabo Verde foram os primeiros a utiliza-lo e os demais países lusófonos ainda não colocaram as novas regras em vigor, o que não faz sentido a questão do alinhamento do cronograma.

No meu ponto de vista, também não faz sentido o prazo maior para a adaptação da população – assim como não faz muito sentido o próprio Acordo Ortográfico, como falarei mais adiante. Para mim, soa um pouco “ditatorial” - falando grosseiramente, na falta de uma palavra melhor -dizer que “estamos assinando um acordo pra unificar a ortografia entre os países falantes de língua portuguesa e vocês tem agora 3 anos para aprender as novas regras”, como se a assimilação do conhecimento tivesse um prazo.


Flávia Cambi é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, com ênfase em Variação e Mudança Linguística, pela UNESP

Porém, como tudo funciona da forma mais burocrática possível, essa atitude de estender o prazo foi, de certa forma, previsível.

O governo brasileiro, na verdade, adiou a implementação porque causou muita polêmica entre o meio acadêmico, sobretudo entre os linguistas. No meu ponto de vista, e na maioria dos professores também, o acordo sequer deveria entrar em vigor, porque do ponto linguístico ele não faz sentido. O português falado em Portugal é muito diferente daquele que é falado em Cabo Verde, que é muito diferente daquele português que é falado em Moçambique, que é muito diferente daquele que é falado por nós. Eu, inclusive, defendo a ideia de chamarmos nosso idioma de “língua portuguesa brasileira” ou simplesmente “brasileiro”, justamente por conta dessa diferença. Então, achar que vamos padronizar, ainda que minimamente, todos esses “portugueses” falados nesses países é uma ilusão, e as diferenças ortográficas são poucas, comparadas as demais diferenças, que já atingem diversos níveis da linguagem: a semântica, a fonética e até a sintaxe.

DESCALVADO NEWS – Quais são as principais mudanças para os brasileiros (se possível com exemplo de palavras ou frases)?

FLÁVIA CAMBI: Resumidamente, o Novo Acordo Ortográfico atinge apenas o alfabeto, os acentos, o hífen e o trema. Segundo o Ministério da Educação, o Brasil terá apenas 0,8% de seus vocábulos alterados com o Novo Acordo, enquanto que os portugueses, por exemplo, terão 1,3%.

O alfabeto e o trema não sofreram grandes mudanças: k, w e y passam a integrar o alfabeto, que fica, portanto, com 26 letras, e não mais 23. Isso acontece porque essas três letras eram vistas em uso apenas em palavras estrangeiras, adotadas no nosso idioma. Contudo, muitas dessas palavras, ainda que oriundas de outro idioma que não o português, já integram o nosso idioma, pois foram abrasileiradas, sofrendo ou não mudanças na escrita, sem contar que temos muitos nomes indígenas e abreviações de medidas. Agora, elas passam, então, a fazer parte do alfabeto oficial.

Com relação ao trema, podemos ficar tranqüilos tranquilos: ele deixa de existir. Isso para os substantivos simples, já que a regra não se aplica a nomes próprios, como Müller e Citröen, por exemplo.

Já o hífen e o acento dão um pouco mais de trabalho. No caso dos acentos, os chamados acentos diferenciais deixam de existir em algumas palavras homógrafas (escritas da mesma forma), mas que são de classe e função gramatical diferentes. Um exemplo de mudança é o para, que antes era acentuado na posição de verbo, para distinguir do para, preposição. Já o verbo poder, por exemplo, conjugado nas formas pode e pôde não sofre alteração no acento diferencial: 

 

Classe gramatical

Como era

Como ficou

(a) para

Verbo parar (3ª pessoa do singular do Presente do Indicativo)

Ela pára de estudar quando escuta algum barulho.

Ela para de estudar quando escuta algum barulho.

(b) para

Preposição

Luís trouxe um presente para mim.

Luís trouxe um presente para mim.

 

 

Classe gramatical

Não houve alteração

(a) pode

Verbo poder (3ª pessoa do singular Presente do Indicativo)

Sofia já pode ir à piscina, pois não está mais doente.

Sofia já pode ir à piscina, pois não está mais doente.

(b) pôde

Verbo poder (3ª pessoa do singular do Pretérito Perfeito do Indicativo)

Meu pai pôde ouvir o que ele disse, pois ele estava perto.

Meu pai pôde ouvir o que ele disse, pois ele estava perto.

Ainda sobre o acento, o acento agudo também foi eliminado de palavras com ditongo aberto “ei” e “oi”:

Como era

Como ficou

idéia, platéia, colméia, jibóia

ideia, plateia, colmeia, jiboia.

Por fim, outra mudança sofrida é o uso do acento circunflexo em palavras que contém as vogais “e” e “o” dobradas em verbos e em substantivos, como, por exemplo: 

Como era

Como ficou

Eles crêem em um único Deus.

 

Outros casos: lêem, vêem, dêem;

Eles creem em um único Deus.

 

leem; veem; deem.

Maria sentiu enjôo pela manhã, mas já passa bem agora.

 

Outros casos: vôo.

Maria sentiu enjoo pela manhã, mas já passa bem agora.

 

Outros casos: voo; enjoo.

No caso do hífen, as alterações são mais impactantes: 

Vogais diferentes

Não use hífen e junte

autoescola, infraestrutura, autoajuda, semiaberto, semiárido, autoafirmação

Vogais iguais

Use hífen

anti-inflamatório, micro-ônibus, micro-ondas, auto-observação, contra-ataque

Consoantes diferentes

Não use hífen e junte

intermunicipal, hipermercado, superpopulação

Consoantes iguais

Use hífen

sub-base, super-requintado, inter-relacionar, super-romântico

Vogal + Consoante

Não use hífen e junte

seminovo, autoconhecimento, autodesenvolvimento

Consoante + Vogal

Não use hífen e junte

hiperacidez, superinteressante

Vogal + R/S

Junte e dobre o R ou o S

antirrugas, antissocial, ultrassonografia, minissaia, autorretrato

DESCALVADO NEWS - Quem é que deve estar mais atento às novas regras?

FLÁVIA CAMBI: Como sabido, de 2009 para cá as duas normas eram aceitas. Os candidatos do Enem, por exemplo, podiam, até então, redigir a redação pedida no exame tanto nas regras antigas quanto nas regras do Novo Acordo sem problema nenhum, ou seja, o candidato não era favorecido por saber as novas regras da mesma forma que também não era prejudicado por escrever “idéia” no lugar de “ideia”. E isso não era típico do Enem: outros vestibulares e concursos públicos também aceitavam as duas formas e documentos, publicações e cartas oficiais também poderiam ser redigidas em qualquer uma das formas. Acredito que os que devem estar mais atento à mudança, agora, são os vestibulandos que deverão, obrigatoriamente, redigir suas redações utilizando das novas regras, pois a partir de agora “idéia” é considerado um erro ortográfico e, portanto, passível de ser penalizado em uma redação. Sem contar, é claro, nos editores, revisores, professores e jornalistas.

DESCALVADO NEWS – Como absorver todas essas mudanças? Existe um método que seja prático e funcional?

FLÁVIA CAMBI: Meu conselho para quem realmente está interessado em aprender as novas regras do Novo Acordo, por qualquer que seja o motivo: se você está buscando em gramáticas e portais de língua portuguesa que visam passar uma infinidade de regras, lendo uma por uma, pare imediatamente. E isso vale para a aprendizagem de qualquer idioma. É claro que ter uma boa gramática ou guia com regras serve como um apoio e pode ajudar, mas não é um método prático e tampouco funcional, porque não é suficiente. Nossa língua, assim como tantas outras, é tão diversificada e rica que não cabe em um livro de gramática, por mais funcional que seja ela. E isso não serve apenas para o português brasileiro: se fosse assim, com uma boa gramática e um bom dicionário, teríamos mais pessoas no mundo falando alemão, romeno ou árabe, ou, simplesmente, mais pessoas falantes de inglês como segunda língua.

Por experiência, falo que a melhor maneira para se aprender alguma coisa, qualquer que seja, é através da leitura. Não tenho vergonha nenhuma em dizer, até porque isso não é nenhum motivo de vergonha e também espero não ser mal interpretada, que eu nunca aprendi que paralelepípedo é acentuado porque todas as proparoxítonas são acentuadas em português. Ou seja, se hoje eu tenho um bom domínio de escrita foi porque não fiquei apegada a todas as regras que nossa gramática nos explica, e devo admitir que eu odiava estudar sobre todas as regrinhas difíceis que só seriam assimiladas se eu decorasse. Em vez disso, no lugar de ler uma gramática eu sempre li muito, desde que comecei a ler aos 6 anos, e sempre li de tudo: gibi, revistas, livros e jornais. E com propriedade posso dizer que isso melhorou minha escrita, tanto na parte formal quanto na parte de conteúdo: mais do que aprender a escrever conforme manda nossa gramática tradicional, também aprendi a organizar melhor minhas ideias para que eu pudesse me expressar melhor.

Mas, voltando ao assunto do Novo Acordo, aqui vai minha dica: não se desespere em aprender de um dia para o outro. Se preocupe em aumentar seu hábito de leitura, pois revistas, jornais e livros deverão obrigatoriamente passar pela mudança e, com o hábito, aos poucos, você vai assimilar as mudanças de forma eficaz e sem perceber, de uma maneira que não seja fastidiosa.

DESCALVADO NEWS – Costumamos dizer ou mesmo ouvir que a nossa Língua Portuguesa é muito complexa. Qual sua opinião?

FLÁVIA CAMBI: Eu não acredito nisso de que o português brasileiro é complexo. Como dito anteriormente, ele é bastante rico pela diversidade, dada a extensão do país e o regionalismo presente. Eu consigo me comunicar com alguém do Acre, da mesma forma que alguém do sul também consegue me entender, mas há muita diferença, sobretudo no sotaque e no vocabulário. O que eu acho, na verdade, é que o ensino de línguas é complexo, no sentido de ser dificultado por quem ensina, e é o que faz a gente acreditar que a língua é complexa, quando na verdade não é. E isso também vale para outras línguas, pois sou professora de inglês e espanhol e vejo o quanto as pessoas ficam com medo de aprender um idioma novo, sobretudo o inglês, que é muito diferente do nosso idioma. No caso do português, entre em uma escola regular de ensino básico e pergunte quantas crianças gostam da aula de língua portuguesa: a maioria vai achar chata ou difícil. Infelizmente, o que acontece é que educação deixou de ser prioridade e português, matemática, história, biologia e artes são ensinados de qualquer jeito. No caso da educação pública brasileira, gastam-se bilhões anualmente, mas ainda conseguem deixa-la entre as piores do mundo, enquanto que, no caso da educação privada, o ensino virou comércio e o objetivo das escolas particulares hoje é moldar os alunos para que se tornem protótipos para adentrarem nas universidades públicas e para que estas escolas lucrem com o número de aprovações. Enquanto isso, o poder social da linguagem, e de tantas outras formas de conhecimento, das mais variadas áreas, acaba sendo deixado de lado e o poder de transformação que a linguagem verbal possui não é utilizado, pois não é trabalhado para que venha ser, o que implica em uma falha no desenvolvimento pleno de uma sociedade.

DESCALVADO NEWS – Suas considerações gerais!

FLÁVIA CAMBI: Como já dito, não falamos o mesmo português que é falado em Portugal. É claro que um português consegue entender o que um brasileiro diz, mas poderão acontecer alguns problemas de compreensão. “Caixa” para nós e “boceta” para eles (e nesse caso, pensem na confusão!). “Fila”, “café”, “vitrine” em terras brasileiras e “bicha”, “bica” e “montra” para terras lusitanas. O "Podes dar-me uma boleia?" de lá vira "Você me dá uma carona?" aqui. E olha como essas duas frases são diferentes, não só pelo vocabulário boleia/carona, mas também pelo uso pronominal tu/você e pela ordem sintática dos constituintes na oração. Nosso idioma é tão diferente que os livros do Paulo Coelho, por exemplo, são totalmente reescritos quando importados para Portugal. Se falamos a mesma língua, por que esse procedimento seria necessário?

Os mais conservadores dirão que estamos assassinando o português de Camões. Não, não estamos. E também não somos ignorantes, ao passo que os portugueses sabem conservar da melhor forma o seu idioma. Dizer todas essas coisas é um erro muito comum, do ponto de vista linguístico. O que acontece é que há vários fatores intrínsecos e extrínsecos que moldam toda a estrutura de um idioma, e como brasileiros e portugueses têm um contexto sociocultural (agora sem hífen e tudo junto, hein!) distinto, é evidente que o idioma se configurará de forma distinta. E não há nenhum problema nisso, pois toda essa diversidade corresponde a uma riqueza cultural, herança de nossa história.

Diante dessa pequena exposição de diferenças, portanto, toda a padronização trazida pelo Novo Acordo ainda não é o suficiente para que o objetivo seja conquistado. E, por um lado, é até bom que não o seja, afinal, é praticamente impossível fazer com que as duas línguas sejam próximas, pois, como dito, há muitos fatores por trás de todas essas diferenças, perfeitamente normais para uma língua em uso.

Por outro lado, sob um ponto de vista educativo, com um sistema educacional repleto de problemas como o nosso, o Novo Acordo também traz uma preocupação que se torna constante: como modificar regras que sequer foram aprendidas – você sabia como se usava o hífen antes disso tudo? Você usava o trema quando escrevia cinquenta ou linguística? Aliás, você sabia que existia esse negócio chamado trema na nossa língua? Toda essa preocupação com a vigência do Novo Acordo Ortográfico se sobrepõe às questões mais básicas: queremos padronizar, com pouca eficácia, oito idiomas de oito povos distintos, mas não conseguimos padronizar sequer o ensino básico de qualidade do nosso povo.
 

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