Morre-se, hoje, no hospital, não em casa. A cerimônia fúnebre é rápida.
O luto, mais veloz ainda. Todos querem se livrar das formalidades - e do
defunto. Ninguém mais visita túmulos (a possível exceção talvez seja a
garotada gótica). Assim, a exposição Luctus Lutum, de Elisa Bracher, que
será aberta neste sábado, 22, na Galeria Raquel Arnaud, representa ao
mesmo tempo uma cerimônia pública, organizada, para homenagear a mãe de
Elisa, morta em março, como o estabelecimento de um novo marco na
trajetória de uma artista ousada, conhecida por suas grandes esculturas
de toras de madeira instaladas em parques da cidade (Ibirapuera, Jardim
da Luz).Com
curadoria de Elisa Byington, socióloga e historiadora de arte, a
exposição Luctus Lutum, como indica o título em latim, faz da junção
lodo e luto um jogo de palavras com correspondência no mundo concreto -
o lodo como elemento do princípio vital, bíblico (o barro) e o luto como
fim desse processo. Sua representação visual vem na forma de um
labirinto construído de taipa de pilão, que ocupa todo o andar térreo da
galeria. Impossível de ser decodificado sem ser penetrado, o labirinto
desorganiza o espaço real e desorienta quem está fora.
Para verificar se é uma
construção ou demolição, o espectador tem obrigatoriamente de percorrer
esses corredores como, nos tempos remotos, faziam os iniciados no culto
às deusas agrícolas Deméter e Perséfone, ao seguir ritos de iniciação
para conhecer os mistérios de Elêusis. Pode ser que uma revelação
teofânica - ou hierofânica - aguarde o visitante no fim do percurso. O
mito da morte e da ressurreição, afinal, não se encerra no simbólico
grão de trigo de Elêusis, que morre e renasce das entranhas da terra.
O uso da taipa de pilão
por Elisa Bracher, revela a artista, é naturalmente associado a essa
sociedade agrária, arcaica, que a modernidade urbana substituiu pelo
cinismo e a falsa felicidade forjada pelo mundo industrializado. "É uma
técnica que vi aplicada em silos para guardar grãos em
Descalvado,
que visitava quando criança", conta. Na pequena cidade do interior de
São Paulo, conhecida por suas fazendas centenárias, a artista
desenvolveu uma sensibilidade particular, que lhe abriu as portas da
percepção de uma nova realidade espacial.
Primeiro foram os
troncos de madeira, dos quais ela extraía as cascas, regularizando as
toras com serras. Essas esculturas, no limite da instabilidade, permitem
ao espectador buscar o equilíbrio perdido à medida que circula ao redor
delas, como observou o crítico Rodrigo Naves. No labirinto de Luctus
Lutum, segundo a curadora da mostra, "o caminho sinuoso leva a uma
reconfiguração do espaço sem ser impositivo, ao contrário das esculturas
penetráveis do minimalista Richard Serra". Elisa Bracher, que gosta de
Serra, diz que as diferenças são de ordem cultural - e material, claro,
sendo o sistema rudimentar e arcaico de construir paredes com taipa de
pilão nossa herança colonial portuguesa.
"Resgatar uma técnica
como essa é repensar também o espaço urbano, numa cidade onde quase nada
é público", justifica a artista, que mantém, desde 1997, o instituto
Acaia, uma organização social sem fins lucrativos, na Vila Leopoldina,
onde 300 crianças e adolescentes de conjuntos habitacionais populares
aprendem desde marcenaria até música e artes visuais. Com eles, Elisa
Bracher vai construir, ao lado da biblioteca do Parque Villa-Lobos, um
monumento de taipa.
Na exposição Luctus
Lutum, além do labirinto de taipa in situ, a artista mostra, no segundo
andar da galeria, desenhos, uma escultura (Pulmão) e fotografias pinhole
(em câmera escura, registradas sem lente) durante uma residência
artística num navio do Círculo Polar Ártico, em 2014. A escultura é
feita de material nunca antes utilizado por Elisa Bracher: plástico.
Obra premonitória, que antecipou o diagnóstico da mãe, esse "pulmão",
formado por dois quadrados de plástico, infláveis e interconectados, é
mesmo uma metáfora do corpo numa sociedade materialista que acredita
mais na máquina (o pulmão é mantido por uma engenhoca mecânica) que na
transcendência física. Em tempo: a mãe da artista, a educadora Sônia
Maria Sawaya Botelho Bracher, morreu em março, aos 78 anos, de câncer
pulmonar.
Para acompanhar a mostra
de Elisa Bracher, o jovem compositor paulistano Rodrigo Felicissimo
compôs Campo dos Sinos, delicado poema sinfônico que traça uma
correspondência musical com as fotografias feitas pela artista no
Ártico. Ele criou a peça com o método desenvolvido pelo compositor
Heitor Villa-Lobos para transpor musicalmente a sinuosidade das
montanhas do Brasil - Villa usava papel milimetrado para "interpretar" a
paisagem como uma partitura. Em sua Sexta Sinfonia, também chamada Sobre
as Linhas das Montanhas (1944), ele faz esse exercício analógico entre
imagem e melodia. Multidisciplinar, Elisa Bracher cria agora esculturas
para um filme que Julia Murat começa a rodar em setembro, a turbulenta
relação entre um escultor e uma bailarina.
EXPOSIÇÃO "LUCTUS LUTUM
Galeria Raquel Arnaud - Rua Fidalga, 125, São Paulo (SP)
De 22 de agosto à 24 de outubro
(segunda à sexta, das 10`h00 às 19h00 e aos sábados das 12h00 às 16h00)
Mais informações pelo telefone (11) 3083.6322
*Fonte: Estadão Conteúdo
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